“Consonâncias e Dissonâncias” – Por ADM 13.
Apesar de ser fascinado por áudio, nunca me aprofundei na audição de áudio dramas como mídia de entretenimento, seja por uma questão de barreira idiomática e falta de acessibilidade (em relação a obras estrangeiras), seja por não me sentir confortável ouvindo uma narrativa sem estímulos visuais para meu foco e imersão. Logo, esse formato é um hábito recente que vou nutrindo com empolgação, a ponto de começar a experenciar a mídia por meio de produções independentes, mas que, pela falta de familiaridade, ainda estou aprendendo a compreender a forma como interpreto o que experencio. Aliando isso ao meu gosto de explorar conteúdos criados pela comunidade fã de Doctor Who, que introduzo o meu texto sobre “Os Dois Doutores e os Pomares do Tempo”, áudio drama realizado em comemoração dos 8 anos de blog Trenzalore, com roteiro e edição de Jonathan Holdorf.

Ao longo de seus 43 minutos totais de duração, o áudio aborda alguns núcleos distintos que são apresentados separadamente e que se amalgamam aos poucos no ato final. O núcleo principal da história reside na personagem Arklan, um garoto que recebe de seu avô uma última gravação contendo um chamado para uma jornada que mudará sua concepção de vida para sempre, onde deve levar misteriosos tubos de tinta que lhes fora entregue para o pico dos três pomares. Enquanto isso um jovem Doutor, antes de fugir de Gallifrey, encontra anomalias por todo o tempo e espaço que o levam a confrontar suas memórias e o seu futuro.
Introdução e Transições
Elencando os principais pontos do áudio drama em minha mente, o que podemos chamar de primeiro ato dessa história é o mais interessante e é o grande destaque da narrativa, devendo-se pela forma como é contado. Somos imersos nos primeiros segundos pela sonoplastia que nos introduz no ponto de vista do protagonista, Arklan, que está a colocar para ouvir uma gravação que recebera de seu avô – uma carta de despedida, que com poucas palavras consegue contextualizar de forma eficiente os alicerces dessas personagens, sua relação de afeto e como ela foi construída, além de funcionar como o ponto de ignição dessa história ao dar ao protagonista um objetivo e ao apresentar as gravações como elemento narrativo. O objetivo aqui apresentado é o de levar misteriosas tintas para o pico dos três pomares, e nos é contado de forma que nos indagamos sobre qual é a função dessas tintas, para quê leva-las para lá, que são importantes para nos engajarmos no conto.
As cenas posteriores transitam entre o núcleo principal vivido por Arklan, e o núcleo secundário focado em um jovem Doutor que ainda está pensando em fugir de Gallifrey, que ao planejar uma folga vê o universo entrando em colapso como toda terça feira nesse mundo. Ambos os núcleos são basicamente monólogos expositivos, em que as personagens tem a função de descrever o que está pensando e observando. Entretanto, é interessante notar como esses dois núcleos fazem isso de forma distinta e igualmente elegante. Arklan está realizando gravações para o seu avô, nutrindo um vínculo sentimental e tentando transmitir em palavras o que ele não pode compartilhar presencialmente. Já o Doutor está sozinho em uma TARDIS e seu jeito hiperativo o faz se expressar a todo momento, sendo até autorreferenciado em um ótimo momento pela personagem que aponta esse comportamento expositivo. Adicionalmente, vemos uma ótima e divertida interação entre o Doutor e sua nave, que tornaram as cenas mais fascinantes e leves de serem ouvidas. Além da parte textual, ressalto a boa interpretação desses atores que conseguem colocar em prática o que foi proposto pelo roteiro, não deixando que a imersão se perca.
A trilha e a sonoplastia são competentes e merecem destaque na forma em que compõem as cenas e as transições entres estas cenas. Até aqui, nada é apressado e o ritmo consegue imprimir uma boa noção de passagem de tempo, permitindo que a trama avance de forma fluida e com bons momentos para respirar, tendo o cuidado de apresentar elementos antes de serem usadas posteriormente. A progressão de Arklan neste primeiro ato funciona narrativamente por conta disso: uma primeira cena introdutória mais contemplativa que nos alerta de uma chuva, seguida de uma segunda cena em que a chuva toma o local e adiciona o mistério das tintas brilharem, uma terceira cena em que a escuridão toma conta de tudo e o garoto “Cata Chuva” é praticamente forçado a usar as tintas que por sua vez provocarão uma consequência.
Esta forma de construção narrativa também é aplicada ao núcleo secundário, onde as bases do Doutor entender o que está acontecendo com o universo vão sendo colocados na mesa. Entretanto, nestes instantes anteriores a introdução do antagonista dessa história, na construção da ameaça, é que vemos a escrita tornar-se um pouco prolixa, confusa e conveniente.
Sobre diálogos, conveniências e dissonâncias
Se anteriormente destaquei que os recursos de monólogos contextualizados para os personagens foi uma solução interessante por ser justificada narrativamente, o mesmo não se pode dizer para a introdução do antagonista do áudio drama. Quando ouvimos sua voz discursando, não dá para entender exatamente o porquê da exposição eloquente de seus planos. Claro, todos sabemos que é difícil de transmitir intenções de um personagem em pouco tempo numa mídia que apresenta limitações ao ter só o áudio para contar uma história, mas há formas de apresentar este personagem de forma mais simples, eficiente, e menos repetitiva com o restante do áudio. Nos mostrar e demonstrar suas intenções é mais impactante do que nos dizê-las.
Quando retornamos ao núcleo principal, é possível notar a conveniência do roteiro em levar a personagem onde ele precisar para que a conclusão previamente planejada seja concluída. Ao mostrar na cena já mencionada em que Arklan goteja as tintas no chão, compreendemos que isso é parte de uma construção para uma consequência derivada de um mistério. Posteriormente, vemos o menino em um lugar estranho no espaço, entendemos que esta é a consequência do gancho anterior. Porém, quando vemos Arklan tocar no riacho roxo, viscoso como tinta, e ele é teletransportado novamente para Gallifrey paramos e nos perguntamos: qual a necessidade dessa cena existir? Essa cena repete a ação da cena anterior (consequência repetida), logo ela não avançou a história, tampouco desenvolveu a personagem principal interna ou externamente. Esta cena só pode ser compreendida com acontecimentos futuros, que é deixada implícita a necessidade de se tocar o riacho roxo – logo, só cumpre a função de ferramenta de roteiro.
Tal conveniência pode ser vista no núcleo secundário, mas mais facilmente perdoável por ter sido encaixada mais naturalmente através de um alivio cômico, quando o Doutor entrega o problema que irá acontecer com ele antes daquilo acontecer – quase que uma piscada de olho para o ouvinte. Todavia, o final desta cena é um dos momentos em que o áudio se tornou mais confuso de entender os acontecimentos, e que desanda quando ocorre a transição da queda do Doutor para a voz do vilão da trama que narra este momento de forma lírica, poética, totalmente dissonante com o tom do áudio novamente. Ao invés de pensarmos “Quem é essa pessoa?” ou “O que essa coisa quer?”, nos questionamos sobre qual a importância dessa narração, ou para quem essa narração está sendo direcionada? Mesmo que os motivos sejam apenas para expor os pensamentos do antagonista, voltamos a dissonância narrativa da falta de contextualização desses monólogos comparados aos núcleos anteriores em que este recurso foi utilizado.
Além disso, essa parte ficou extremamente cômica para mim particularmente, pois nesse climão de mistério o vilão narra “[…] perdido. Sozinho. Em seus pensamentos. Flutuando… pelo abismo. MAS NÃO POR MUITO! EM BREVE ELE ESTARÁ CONOSCO! […]” e eu só consegui pensar no carinha do comercial das Casas Bahia aparecendo na minha TV do nada, durante um comercial da Tela Quente em 2009, anunciando uma promoção que era só até amanhã, mas que tinha todo dia – e não, isso não é um trauma de infância, mesmo que pareça por se tratar de um comentário extremamente especifico, e que depois eu tento justificar e escrever várias linhas inúteis para tentar te convencer do contrário, mas que na verdade é por eu ser extremamente prolixo.
Enfim…
Em torno do minuto 17 nós ouvimos a primeira cena passada no núcleo terciário do áudio drama, composto pelo Cardeal Solstício e Madame Rainha, onde o primeiro está colocando Gallifrey sobre alerta de guerra e a segunda está sugerindo uma abordagem mais diplomática para um certo invasor de seu planeta. É nesse breve diálogo em que nos é apresentado pela primeira vez o que seria o vilão na trama (algo como lendas antigas sobre criadores do próprio tempo), nos é contada uma profecia sobre “O Garoto Que Escapou do Tempo” que se tornará um Senhor do Tempo, e que por algum motivo que não compreendi é algo ruim e que causará toda a destruição da realidade como conhecemos.
É neste ponto em que um tema recorrente se repetirá com alguma frequência: a falta de naturalidade dos diálogos. Sem dúvidas este é um dos problemas mais recorrentes em áudio dramas por se tratar de um desafio complexo por conta de determinados fatores. Conversas são geralmente compostas de frases não necessariamente sequenciais entre os interlocutores. O que quero dizer com isso? Que nós nos interrompemos antes de nossas sentenças se completarem de forma propriamente dita – o que é virtualmente inviável de se replicar; a ponto de que os diálogos que vemos em quase todas as mídias não necessariamente replicam como nós falamos, mas que nos fazem relacionar por contra de outras nuances. Estas nuances se encontram nas nossas intenções e entonações, como pronunciamos (nossa prosódia), como reagimos ao ouvir o outro falar. Como a maioria das produções, provavelmente os áudios foram gravados pelos atores em momentos diferentes – e é perceptível a diferença da interpretação entre os atores, parecendo com que essas personagens não estejam conversando no mesmo lugar uma com a outra. Claro que isso também pode ser influenciado com a direção (ou a falta de direção). Logo dito tudo isso, aliado com a parte textual que acredito ter ficado um pouco abaixo, estas cenas do núcleo terciário são as mais fracas da obra.
O objeto, a forma e a razão do querer
A segunda metade do áudio drama é a mais problemática, em parte por não ser fácil de compreender o que está acontecendo. No núcleo secundário, Doutor e o Antagonista encontram-se pela primeira vez. De início é realmente instigante a sensação de como esse vilão parece saber tanto sobre o Doutor, sobre o seu passado e sobre seu futuro, da raiva que o vilão aparenta ter por Gallifrey, como ele passa a imponência de se proclamar como um dos criadores do tempo, e na sua tentativa de persuadir o Doutor a voltar para o seu… verdadeiro lar? É fácil de ser fisgado por essas curiosidades, dúvidas. Mas ao ouvirmos este diálogo, tudo parece ficar vazio. Repetidas vezes ouvimos “logo tudo será revelado” e coisas do tipo, e começamos a no questionar as perguntas que mais fazemos para os motores de uma história: O QUE este personagem quer? COMO este personagem quer alcançar esse objetivo? POR QUAL MOTIVO ele busca isso? E não necessariamente temos uma resposta convincente sobre a função narrativa desse vilão. A inexistência desses pontos dá a entender de que isso aqui precisa acontecer porque precisam, para história se justificar por ela mesma. Uma ferramenta de roteiro.
Enquanto isso os núcleos de Arklan e Gallifrey se colidem. Vemos os dois lados dessa chegada, com um Arklan reticente e sentindo-se até desprotegido e inseguro pelo que ele vê da cidadela, e Cardeal assumindo a todo momento um tom defensivo e belicoso. Temos então a cena do interrogatório que vinha cada vez mais sendo necessária para tentar compreendermos o que está acontecendo, e ver se tínhamos respostas de algum jeito. A cena se inicia com o Cardeal dizendo “Este é um momento de reflexão” … Na exata quarta fala do Cardeal após as primeiras aspas ele ordena: “Guardas, atirem!”. Não posso dizer que isso vai contra o personagem, mas ao mesmo tempo essa decisão privou o mesmo de tomar atitudes mais lógicas dada a posição que alguém daquele cargo tomaria neste lugar. Aqui é possível notar mais incongruências na interpretação dos personagens entre, que parecem reagir em urgências levemente diferentes.
Nosso antagonista e o Doutor dão prosseguimento ao diálogo enquanto isso. Em sua tentativa de persuasão, o vilão mostra o futuro do Doutor e o questiona se este é o destino que ele quer trilhar ao invés de aceitar a “verdade” sobre si mesmo. A interpretação eloquente aqui merece destaque, pois torna o vilão uma figura extremamente persuasiva e imponente. De forma repentina, temos um TARDIS ex machina (um deus ex machina, onde um elemento narrativo não apresentado antes aparece do nada pra resolver o conflito), onde vemos um Doutor do Futuro, após vivenciar todas as aventuras que já presenciamos, vindo ao resgate a solução desse núcleo.
Com alguns momentos cômicos (sendo “QUEM É ESSE MALDITO?” a melhor parte), vemos o Doutor do Futuro explicando como ele chegou ali e revelando a “identidade secreta” do vilão, que é na verdade um parasita temporal que invade memórias e sequestra Senhores do Tempo, e a partir do momento em que a vítima não acredita mais neles, esses seres deixam de ter poder e vão embora (pois teriam conseguido se safar se não fosse esse Doutor do Futuro e um cachorro falante). Em nenhum momento aqui fica entendido se todas as indagações sobre ele eram verdadeiras (seja das pesquisas do Doutor no primeiro ato sobre a as anomalias, sobre os monólogos do vilão sobre ele mesmo, e sobre o diálogo inicial exposto no núcleo de Gallifrey) ou se é apenas um parasita e ponto final. De qualquer forma, a conclusão dessa trama secundária é extremamente anticlimática, que ao não ser entendível se torna vazia dentro da montagem. E de tão vazia, precisamos que o Doutor que acompanhamos até ali fale “E agora?” para transitarmos para a conclusão dessa história. Aqui também vejo uma grande dissonância entre as interpretações dos personagens, que parecem não compor a mesma cena, principalmente pelo tom utilizado pelo Doutor do Futuro, que parece levemente mais contido do que a necessidade da cena e que não pareceu dar a mesma carga dramática que o seu texto necessitava.
Contradições
Paradoxos são contradições. Toda vez que trabalhamos com contradições em uma história é importante nos atentarmos não apenas na conclusão que se ligará ao começo, mas no processo que levará esse caminho. No paradoxo de Bootstrap o que realmente importa não é a revelação da existência desse ciclo paradoxal, mas a impressão de que esse destino realmente era inevitável.
Nos minutos finais do áudio drama presenciamos o momento da regeneração de Arklan após ter sido ferido por conta das ordens do Cardeal. Sua regeneração é roxa, não dourada, o que leva a Madame-Rainha a discursar sobre um trecho de conto do “Garoto que escapou do tempo”. Neste conto foi descrito que a Seiva Estelar vinha dos pomares que nasceram graças a uma anomalia temporal, e de que dela surgiria uma nova espécie que comandaria o tempo. As seivas desses pomares percorriam riachos, sendo o riacho roxo a que continha a regeneração e a capacidade de viajar no tempo e espaço, a vermelha conferia a capacidade de criar mundos com o pensamento, e a verde garantia a vida eterna sem regeneração. Logo, quando Arklan regenera em seu próprio avô entendemos que este é um paradoxo de Bootstrap.
Os Doutores entram em cena, se juntando o núcleo principal, e por algum motivo mágico todos eles parecem já ter todas as respostas para o que aconteceu. Além do paradoxo, nos é contado que a anomalia causada pelo parasita é o que permitiu a ida de Arklan para Gallifrey o gerou este ponto fixo no tempo. Desta anomalia é que viriam as Seivas Estelares, e é pelo contato da Seiva roxa que o jovem Arklan conseguiu se regenerar.
Quando olhamos em retrospecto, podemos compreender os alicerces para essa conclusão. Infelizmente, nem todos esses elementos narrativos são coesos e/ou verossímeis dentro dessa lógica interna, e essas ferramentas de roteiro enfraquecem a construção final dessa história. Arklan precisava estar mesmo naquela cena do riacho? Se fosse descrito que ele gotejou a tinta roxa poderia dar mais coesão a história. Qual a função das outras tintas? O Cardeal precisava ordenar para atirar no interrogatório? Teria como forçar a regeneração de outras maneiras. Qual a função do Doutor do Futuro nessa história? Apenas “resolver” a trama do parasita. Não necessariamente isso torna a história ruim, muito pelo contrário, afinal, é complexo criar acontecimentos que se desencadeiem naturalmente. Todavia, soluções mais naturais poderiam fortalecer e realçar ainda mais as qualidades que a obra apresenta.
O áudio finaliza do jeito que começa. Com a gravação de Guarda Pó para o seu neto Cara Chuvas. Uma mensagem dele para ele mesmo. Recontextualizando o começo dessa história e nos fazendo pensar: “Esse cara pegou a própria avó sabendo disso”.
“Os Dois Doutores e os Pomares do Tempo” está disponível nos feeds de Podcast e Áudio Drama do Blog Trenzalore e em seu respectivo canal no YouTube. É um áudio drama divertido e com um bom valor de entretenimento, com uma sonoplastia competente que te imerge de forma eficiente, juntamente de boas escolhas na trilha sonora que auxiliam nas transições entre cenas mantendo um bom ritmo na audição. Os diálogos e cenas com pouca função são o seu calcanhar de Aquiles, enfraquecendo o conjunto final. Destaco a interpretação dos protagonistas, principalmente do Doutor que acompanha toda a duração do episódio, que traz muita leveza em suas cenas enérgicas junto de sua expressiva TARDIS graças as reações e a sonoplastia.
Por fim gostaria de destacar elementos que não são ligados ao conteúdo publicado: 1. Seria interessante elencar os personagens junto dos atores, o que facilitaria o reconhecimento das vozes para novos ouvintes (como eu); 2. Já que o roteiro completo está disponível para compra, seria maravilhoso que fosse disponibilizada Legendas na versão de YouTube, utilizando a ferramenta da própria plataforma, para garantir acessibilidade para pessoas com determinados graus de deficiência auditiva que acabam sendo negligenciados até mesmo em conteúdos oficiais da série. Não é algo que podemos cobrar de criadores de conteúdos independentes em conteúdos comuns, afinal, é algo trabalhoso e que há pouquíssima demanda, mas como essa disponibilidade é mais aparente, seria interessante de ser incluída.